na espinha do dragão

quinta-feira, outubro 27, 2005

percebendo o caminho

No vento da primavera
as florescências do pêssego
começam a se destacar.
Dúvidas não fazem crescer
ramos e folhas.

(Dogen Zenji)
|| Koun, 4:32 PM || (0) comments |

quarta-feira, outubro 26, 2005

abre-alas

cobre-se de flores
o asfalto da avenida
fim da chuvarada
|| Koun, 5:51 PM || (1) comments |

quarta-feira, outubro 19, 2005

num caminho

Satã: – Daqui a cinco minutos podemos estar à vista da cidade. Hás de vê-la desenhando no céu suas torres escuras e seus casebres tão pretos de noite como de dia, iluminada, mas sombria como uma essa de enterro.

Macário: – Tenho ânsia de lá chegar. É bonita?

Satã (boceja): – Ah! é divertida.

Macário: – Por acaso também há mulheres ali?

Satã: – Mulheres, padres, soldados e estudantes. As mulheres são mulheres, os padres são soldados, os soldados são padres, e os estudantes são estudantes: para falar mais claro: as mulheres são lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes vadios. Isto salvo honrosas exceções, por exemplo, de amanhã em diante, tu.

Macário: – Esta cidade deveria ter o teu nome.

Satã: – Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o monge. Demais, essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila e pobre como uma aldeia. Se não estás reduzido a dar-te ao pagode, a suicidar-te de spleen, ou a alumiar-te a rolo, não entres lá. É a monotonia do tédio.

(Álvares de Azevedo [1831-1852], Macário)
|| Koun, 9:11 PM || (0) comments |

segunda-feira, outubro 03, 2005

passional

Sexta-feira, 9 da noite, na Augusta, entre o Centro e a Paulista.
No meio do trânsito, entre um ônibus elétrico, três blindados e um catador, a figura inconfundível do Seu Alfredo.

Vinha numa bicicleta verde, alegre que só ela. Vestia uma bermuda de ciclismo mais velha que o Rondina, camiseta desbotada e calçado de couro furado no dedão; levava mochila de lona nas costas. Pelas bordas do capacete saía aquele cabelo impossível, eriçado, branco, comprido para os lados. Seu rosto, sempre sorridente, não deixa a gente saber se ele tem 7 ou 280 anos. Enfim, um desses macunaímas que circulam por São Carro de Piratininga.

Sai o grito: – Ei seu Alfredo!

Ele: – Ô garoto!

Ele encosta a bicicleta na calçada, pra conversar. O catador olha. Não se vê o motorista do blindado.

– E aí, seu Alfredo, tá vindo de onde?

– Tô vindo do Brás. Fui ver uma mulher lá.

– Ah é?

– É. Eu não queria ir.

– Não?

– É. Não queria, mas ela insistiu.

– Insistiu, Seu Alfredo?

– É. Ela me ligou lá na bicicletaria e disse: "Seu Alfredo, eu tô daquele jeito e só você sabe cuidar de mim direito". Aí eu fui né!

(além do mais, ela o chama de "Seu Alfredo")

– E tá indo pra casa Seu Alfredo?

– É. Vim vindo devagarzinho no meio do trânsito, mas ali no começo da Augusta acelerei subi isso aqui como um foguete (disse isso apontando na bicicleta uma coroa de uns 80 dentes e uma catraquinha de uns 3 dentes). Quero estar em casa lá pelas 10, 10 e 15.

(eis a redondilha do Seu Alfredo: Pinheiros, Brás, Taboão)

– E o senhor já jantou, Seu Alfredo?

– É. Eu comi uma coisinha lá na casa da fulana. Depois parei ali embaixo e tomei um cafezinho.

– Tá bom, Seu Alfredo, vai com cuidado.

– Tá bom, garoto, até mais, fica com Deus.

Enquanto isso a fulana do Brás, naquele momento, deitada de roupão, cigarro entre os dedos, tomava um vermute e olhava o céu escuro pela janela, com um sorrisinho maroto no canto da boca.


Seu Alfredo sabe mesmo cuidar dela...

|| Koun, 4:31 PM || (2) comments |